Política: Cargo ou função técnica: por que isso não procede frente às coerções políticas

Ouve-se dizer em demasia, principalmente em períodos eleitorais, que os governantes preferem ou vão escolher pessoal técnico para compor seus governos. Como se trata de sentença e promessa já corriqueiras, seus sentidos acabam por sofrer o que se pode chamar de "esvaziamento". Ocorre que, se perguntarmos melhor, ou se recorrermos aos preceitos científicos acerca da linguagem humana teremos que a neutralidade, embora tão almejada, não é constitutiva de nossas relações, as quais passam, fatalmente, pela linguagem. E se passam pela linguagem, passam também pelas práticas sociais de que aqui estamos a falar: a nomeação de pessoas que supostamente teriam condições de exercer cargos de forma puramente técnica.

Portanto, chegamos ao ponto principal: cargos técnicos, no sentido aí que se quer fazer valer (ao menos na boca dos governantes), não existem! Todo sujeito, ao ocupar determinada posição social, não só irá ocupá-la com seus vieses ideológicos, como pode ter acessado a essa posição devido mesmo ao seu perfil, que não é só "técnico". Se assim fosse, não teríamos ocupando a presidência da Fundação cultural Palmares o Sr. Sérgio Camargo, cuja postura "técnica" seria, portanto, totalmente avessa aos ideais e aos princípios daquela Fundação. Do mesmo modo, não teríamos visto chefiar a pasta federal da Educação ocupantes como Abraham Weintraub ou mesmo o atual ministro Milton Ribeiro, cujas matrizes ideológicas e não laicas já são manifestamente conhecidas.

Ademais, frente às coerções políticas a que vão sendo submetidos nas passagens que fazem pelo(s) governo(s), nenhum dos executivos técnicos consegue cumprir suas funções sem a sucumbência das pressões que lhes são colocadas. Em suma, para que um cargo fosse essencialmente técnico, teriam de submeter progressivamente menos ao universo da politicagem, mas enquanto isso não for possível, a nomenclatura se reduz apenas a um adjetivo. E não se trata, de modo algum, de não aplicar confiança aos que se esmeram para pôr em prática aquilo que aprenderam, que estudaram e que pensaram ser o melhor num ofício. Mas não se pode relativizar a força que a política tem sobre a escolha de tais cargos, de tais nomes. Lembremos, à guisa de conclusão, da máxima aristotélica "O homem é um animal político". Pode-se pensar que há ampla possibilidade em congregar o técnico ao político, algo assim, demasiadamente humano, desde a linguagem - um dado parcial - até às nossas atitudes mais cotidianas. Eis um mote para reflexão...

O autor, a obra e o sistema-livro: o que é pode não ser

Notadamente no senso comum, tem-se a impressão de que um autor é o mesmo que um indivíduo que escreve um livro ou como um sujeito produtor de certa obra, esta que, por seu turno, é frequentemente entendida como um conjunto de livros de um dado indivíduo.

Do senso crítico, porém, temos outra perspectiva, e aqui vou deter-me especialmente em Michel Foucault, mas poderíamos nos remontar a outros estudiosos do tema, entre os quais, na contemporaneidade, destacam-se Roger Chartier, historiador francês, e o linguista Dominique Maingueneau. Tal perspectiva trabalha com a hipótese máxima de que não existe autor, mas se exerce uma função-autor (Foucault [1969]1992). Dessa forma, o autor não é o indivíduo que escreve um texto, mas é o sujeito inscrito numa dada posição discursiva, ele aparece nos limites do discurso, que o forma, afinal. Não à toa, e tendo a ver com o tema a partir do qual enuncia, em geral se pergunta "mas o autor desse texto é mesmo Fulano de tal?", porque se acredita que uma obra, para que pertença a um ou a outro autor, deva estar coesa com o que se leu/ouviu desse autor anteriormente. Para Foucault (1992), trata-se de um "agrupamento discursivo" num fio de coesão, mas isso não é o homem empírico, mesmo porque, quando escrevemos, cada um de nós, nos apoiamos em textos já escritos, dizeres já ouvidos, de forma tal que fica imensamente discutível dizer que Fulano de tal é que é a origem daquele "novo" ato de dizer.

O mesmo, por essa perspectiva, acontece com a noção de obra, tida, a princípio, como uma unidade do autor, mas não se sabe, para ficarmos no mínimo, se tudo o que se agrupou como sendo 'obra' pertence à mesma época da publicação de um livro, e também não se sabe até qual ponto determinada obra se inscreve no regime discursivo do que se pretende para ela. Antes, pode-se dizer, está submetida a um jogo de representações, nos termos foucaultianos.

Evidente que essa discussão passa pela noção de sistema-livro, isto é, como o livro, tornado objeto-editorial, ajuda na contribuição da manutenção de um ideário que controla o discurso, que define "o que pode e deve ser dito", mas não pensando aqui na esteira de Pêcheux, e apenas pelo simples fato de não estarmos implicados o bastante com a noção de 'ideologia', mas pensando em Foucault mesmo, quando em A Arqueologia do saber, de 1969, fala em formações discursivas. Mas o ápice desta discussão está em O que é um autor? (1969) e em A ordem do discurso (1970), em que ele desenvolve a noção de autoria e a de comentário.

 O livro, por exemplo, como objeto editorial, é resultado desse agrupamento discursivo, o qual é, por sua vez, fruto de um controle, de uma seleção de dizeres; fora dessa ordem, a publicação de uma obra pelas editoras fica complicada. Veja-se, por exemplo, uma fala, em entrevista à revista Nova Escola, editora Abril (2015), de Vanessa Ferrari, da Cia das Letras. https://novaescola.org.br/conteudo/31/trabalho-editor-livros A citação é uma amostra do processo de seleção e aceite do que é uma obra:

Nós trabalhamos diretamente com o autor. A gente lê o livro e faz sugestões, às vezes pontuais, às vezes mais estruturais - como enredo e construção de personagens. Depois, o livro passa por um preparador que também sugere mudanças. E, por fim, a revisão, que faz o pente fino. Um bom editor se coloca no lugar do autor, entende o que e como ele deseja contar a história e ajuda-o da melhor forma possível. Não podemos propor mudanças baseadas no que faríamos se nós tivéssemos escrito aquele livro. A voz do autor deve ser sempre respeitada. É ele quem dá a palavra final. No caso dos escritores internacionais, a preocupação maior é com a tradução, pois a estrutura do livro não é modificada. (FERRARI, 2015).

Nota-se que a autoria é uma gestão (DORETTO & SALGADO, 2018), e portanto, um processo de combinações, em que o texto, e por extensão a obra, não está a salvo de modificações sugeridas ou forçadas pelo sistema de publicação e seleção, o que não é uma novidade de hoje em dia, pois mesmo em tempos de códice (da era Antiga aproximando-se da Idade Média), a mediação editorial era uma prática, embora não contasse ainda com toda a institucionalização tal como vista hodiernamente. Mas já havia quem transcrevesse nas tábuas de madeira os aforismos e as "importâncias" da época, e que chegavam aos leitores de forma também diversa do que se propunha no original. E aí lembra-nos o caso da tradução como ato de relacionar sentidos de línguas outras (mas que deixaremos para outra discussão).

Concluímos, pois, que o sistema-livro é um exemplo cabal para as ideias de Foucault e de seus leitores posteriores, porque deixa entrever como funcionam os meandros de constituição de uma obra e de um autor, e para nós, isso é do plano discursivo.

DORETTO, V. SALGADO, L.S. L.S. Implicações entre mídium e paratopia criadora: um caso de autoria exponencial. Acta Scientiarum (UEM), v. 40, p. 1-11, 2018.

FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa, Editora Vega, 1992.

Maingueneau, D. (2006). Discurso literário (Adail Sobral, trad.). São Paulo, SP: Contexto.

https://novaescola.org.br/conteudo/31/trabalho-editor-livros 

A bibliodiversidade e a "ordem do discurso": breves provocações que podem ser produtivas...

Dando prosseguimento aos meus estudos acadêmicos, entre os quais está incluída a retomada da obra "A ordem do discurso", de Foucault, de sua aula inaugural de 1970, e as leituras realizadas mais particularmente por ocasião da disciplina "Literatura e mercado editorial", ofertada pelos professores Luciana Salazar Salgado e Haroldo Sereza, no Programa de pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), deparei-me com o conceito de "bibliodiversidade"; a ligação que tentei fazer entre ele e a "ordem do discurso" foi de um plano inevitável.

O conceito, que parece ter surgido na década de 1990, acabou por funcionar como uma forma de resistência, vinda principalmente de coletivo de editores independentes latino-americanos. O desejo não era mais que esse: um lugar na possibilidade do dizer. As grandes corporações editoriais, grosso modo, definem o que será lançado, e portanto, que obras serão mais facilmente lidas/acessadas.

A bibliodiversidade, que faz eco ao conceito que a lembra: biodiversidade, defende justamente a possibilidade de leitura em contextos diversos, por meios variados, de forma que o processo de produção literária local seja incentivado, bem como as traduções para outros países, em especial aqueles cujo índice de leitores não é tão considerável, ao serem comparados com países desenvolvidos, por exemplo.

Ao ler o texto "Bibliodiversidade - O que é e por que é essencial para criar conhecimento situado", publicado originalmente no LSE Impact Blog em dezembro de 2019, lemos o seguinte trecho inicial, que aqui reproduzo:

"Os grandes publishers controlam a maioria das publicações em nível internacional. Sua posição de liderança neste mercado é refletida pelo prestígio que eles têm na academia. Muitas de suas publicações são prestigiosas e altamente qualificadas nos processos de avaliação da pesquisa. No entanto, representam apenas uma fração das publicações necessárias para a produção e uso de novos conhecimentos em pesquisa e educação, bem como na vida cultural e social."

A partir desse trecho, lembrei-me de outro, que convido o leitor a ler também e parar para refletir sobre, se preciso for:

"Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade." (Foucault [1970], 2004).

Ora, resguardadas as devidas proporções, penso que as editoras têm papel fundamental na composição das preferências de um público leitor, e para sobreviver às leis de mercado necessitam, é bem verdade, submeter-se a essas mesmas leis. Você que me lê, também não pensa que o mercado editorial possa ter algum tipo de controle?! E não exatamente sobre um discurso, que entendido como uma cadeia de enunciados linguísticos e práticas sociais, é algo muito complexo e difícil de ser captado, mas sobre uma produção literária ou mesmo acadêmica x, que faz parte, fatalmente, aí sim de um discurso literário, de um discurso acadêmico, etc.

O que quero dizer é que a concentração editorial, o oposto, portanto, de bibliodiversidade, colabora para uma ordem do que pode ser lido, talvez não do que deva ser lido, mas seguramente do que é mais fácil ser lido, ser indicado. Não à toa, as editoras viram-se obrigadas a publicarem best-sellers, mesmo as mais tradicionais que não faziam essas publicações com frequência em anos recentes, como a Companhia das Letras, de Luiz Schwarcz, conforme recente entrevista concedida ao jornal Cândido https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Entrevista-Luiz-Schwarcz# . 

Para Scwarcz, não há por que não se investir na publicação dos best-sellers ou nos livros da moda recomendados pelos youtubers; a bibliodiversidade pareceu ser, em suas palavras, quase um imperativo, e se ela é mesmo, então pode romper com alguma ordem literária, com alguma ordem um tanto quanto discursiva, porque traz para o público, sobretudo para os mais jovens, novos lançamentos, oriundos principalmente do universo digital. 

Considerei que fosse importante pensarmos nessa questão, nessa relação - nem tão longínqua assim - que pode ser estabelecida entre a bibliodiversidade e uma ordem discursiva, sempre muito rigidamente controlada. As editoras, ainda no primeiro decênio dos anos 2000, não precisavam se preocupar ou "incluir" os booktubers em seus domínios. Essa variedade de livros, muito contextuais, regionalizados, por assim dizer, a pluralidade de suportes nos quais podemos ler textos, sejam eles adaptados ou modificados de acordo com o público fazem nos interrogar: existe uma nova ordem? Ou há um desejo por uma nova ordem de leituras possíveis e imagináveis?...

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tradução Lara Fraga de Almeida Sampaio.

https://bibliaspa.org/bibliodiversidade/ Acesso em 30 de out. 2020.

https://blog.scielo.org/blog/2020/06/24/bibliodiversidade-o-que-e-e-por-que-e-essencial-para-criar-conhecimento-situado/#.X6Mv0G5KjIV Acesso em 30 de out. 2020.

https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Entrevista-Luiz-Schwarcz# edição outubro de 2020. Acesso em 30 de out. 2020. 

FOUCAULT, Michel. De outros #espaços.

Foucault (1984) assegura que o século XX e, por conseguinte, os anos vindouros, marcam a época do espaço, em que simultaneamente muitas coisas são colocadas lado a lado: a junção e a dispersão, o próximo e o distante, o espaço público e o espaço privado, só para ficarmos em alguns exemplos.

Também não se pode deixar de pensar nas relações de espaço bastante configuradas às relações de tempo, o que, em partes, se pensou na corrente do Estruturalismo, mas apenas em partes.

Ao contrário do que se podia ver nos tempos de Idade Média, os espaços e as disposições não são agora bem definidas, ou seja, cada qual em seu sítio, mas assumem o lugar da extensão, as relações ad infinitum. Nossa configuração hodierna trabalha com a relação de sítios vezes sítios, um moldando-se ao outro.

Entretanto, Foucault lembra que alguns espaços - institucionais - não foram ainda dessacralizados, e cita a distinção entre o espaço familiar e o espaço público, o espaço de lazer e o espaço útil, pois, segundo ele, "todas estas oposições se mantêm devido à presença oculta do sagrado".

Segundo Foucault, tal é a nossa condição:

O espaço no qual vivemos, que nos leva para fora de nós mesmos, no qual a erosão de nossas vidas, do nosso tempo e da nossa história se processa num contínuo, o espaço que nos mói, é também em si próprio, um espaço heterogêneo. Por outras palavras, não vivemos numa espécie de vácuo, no qual se colocam indivíduos e coisas, num vácuo que pode ser preenchido por vários tons de luz. Vivemos, sim, numa série de relações que delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impôr. (Foucault, 1984).

Dos sítios que podem ser descritos, consoante ao que diz o filósofo francês, temos os que perpassam relações, como o comboio de trem, este que nos leva de um ponto a outro, quando nele estamos, e que atravessa espaços outros, cidades, por exemplo. Podemos considerar alguns espaços cuja definição já é bastante certa e clássica ao longo dos anos (o lugar do café, o cinema, o centro de compras, a nossa casa, o quintal e o quarto de descanso...). Com relação a isso, Foucault menciona espaços de dois tipos, sendo um deles, o utópico.

As utopias podem ser definidas como espaços sem lugar real e estão sempre a serviço dos contrários almejados por uma sociedade. As heterotopias, que se assemelham às utopias, são sítios reais, que podem ser representados, contestados, invertidos, parecidos, afinal, com espelhos. Segundo Foucault, o espelho é uma utopia também, pois é um lugar, sem lugar algum, permite ver-nos onde somos ausentes.

É importante observarmos que esses "lugares outros" são uma invenção de todas as sociedades, pois realizam-se na natureza da congregação humana.

As heterotopias, como quase tudo, estão suscetíveis à força do tempo e às culturas regionais; assim, se antes tínhamos as heterotopias de crise, porque remetiam os lugares relacionados às coisas sagradas e profanas, sobretudo no Ocidente, hoje temos as heterotopias desviantes.[1]

Lugares que compreendem as heterotopias desviantes, por excelência, são: a prisão, as casas de repouso comumente destinadas aos idosos e mesmo os hospitais psiquiátricos, lugar onde se separa claramente os loucos dos que conservam a razão. Não menos importante, o cemitério também é uma heterotopia, para a qual poucos desejam ir, mas passam em frente, cultivam valores em comum, e convivem (isto para falarmos da sociedade ocidental), que passou, com o tempo, a fazer praticamente um culto ao morto, justamente numa época em que as descobertas científicas aumentaram e quando já se pensava que o homem tem uma alma.

Se sucede, pois, a heterotopia, a heterocronia, pois o tempo - em seu valor passado - guarda sentidos profundos e importantes, e um dos exemplos citáveis, na sociedade ocidental, no século XIX, é o da proliferação de museus, espaços onde se imagina poder guardar as ideias, as obras - resultantes de recortes humanos, e portanto, interessados - num só lugar, que comumente é dividido também por tempo, anos ou eras.

Foucault alerta-nos para o fato de que existem princípios que regulam os lugares, os desejos e a própria organização social, termina dizendo que o navio é um pedaço flutuante de espaço, pois ao mesmo tempo que sabe chegar a algum lugar, não mensura todos os lugares, tampouco firma-se num só ponto de partida e chegada. A importância do navio que empreende viagens é tão grande que, "em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem; os piratas, pelas polícias" (Foucault, 1984).


[1] As heterotopias de crise referem-se também aos "algures" e "nenhures". Veja-se a questão da sexualidade, por exemplo, aos meninos, o lugar ideal - antigamente - para desenvolver as suas virilidades, era o internato onde ficavam em serviço militar, já as meninas, as "jovens raparigas", deviam "desaflorar" por ocasião da lua de mel ou em lugares bem reservados a tal atos (posteriormente, pode-se estender às prostitutas, os famosos bordéis, tipos extremos de heterotopias).

Meu navio foucaultiano

É ele, o navio, esse lugar sem lugar

que há de partir em mais uma viagem

Não se pergunta a rota que vai inaugurar

Seu condutor sabe que só lhe basta a coragem...

E vai ser ele na vida não só gauche

Vai tão naturalmente ser heterotopia

Buscar para si o espaço que outro não trouxe

E sem nem muito andar achar outra via.

Que é o espelho, senão a própria ilusão?

Que são as demandas, senão a própria vazão?

Dentro do navio entende-se só o presente

E percebe uma hora o passado, e o futuro, ausente. 

O livro como mercadoria

O livro, como toda mercadoria, é feita para o mercado, e portanto, locupleta-se das exigências do mercado. Em certo sentido, podemos atrelar a produção e a venda de livros à chamada Indústria Cultural (Adorno e Horkheimer). Para estes dois autores, mesmo a produção artística teve de se adaptar às estruturas do mundo capitalista.

Como tudo o que é mercadoria precisa ser posto à venda, a publicidade invadiu o setor cultural, como o cinema, o teatro, a produção musical. Em relação ao livro, porém, parece ser mais tímida (é bastante incomum encontrarmos uma propaganda no interior de um livro, como poderíamos ver numa revista, por exemplo).

A questão do livro enseja ainda outras discussões relacionadas aos conteúdos que eles "comunicam" ao público, e afeta, dessa forma, a produção literária, de tal modo que poderíamos nos perguntar se se faz literatura ou se a escreve para o mercado. E, diga-se de passagem, não qualquer mercado, mas aquele voltado a poucos "escolhidos", o que integra os leitores, separando os não-leitores.

A discussão, como você que nos lê deve ter percebido, é bastante complexa e é evidente que não se esgota neste texto. Mesmo entre aqueles que leem, por exemplo, o consumo de livros no Brasil caiu drasticamente nos últimos anos; e pesquisas recentes apontam, como a do Retrato da leitura - em parceria com o Itaú Cultural - que o brasileiro lê cada vez menos, seja por falta de tempo (uma condição que nos foi criminosamente imposta), seja por falta de dinheiro, ou porque o mercado do livro impresso sofreu novas configurações a partir de novos suportes, entre os quais o e-book é um exemplo clássico.

Vale lembrar ainda, no interior dessa ordem mercadológica (pensando conforme em Marx mesmo), que quem produz os livros, na sua forma material, muitas vezes está restrito a ler o que ele mesmo produziu, "a mercadoria que lhe escapa", pois o leitor é uma camada já certa e predestinada. Resta-nos pensar de que forma podemos colaborar para que mais pessoas leiam e tenham acesso ao livro (em seus distintos suportes), o que pode ir de uma pequena ideia, de um fósforo a acender uma chama literária, até a cobrança pela elaboração de uma política pública de formação de leitores que afete profundamente essa composição mercadológica que temos visto (sobretudo no Brasil de hoje, em evidente desgoverno).

A produção literária brasileira do século XIX e o aspecto da edição

Os rastros da produção literária brasileira no século XIX, já os sabemos, apontam que ela teve forte apoio - e por que não influência? - da imprensa nacional (restrita, sobremaneira, ao jornal impresso). Foi no século XIX, segundo (HOHLFELDT, 2003), que os jornais tiveram grande destaque como veículo de propagação de textos literários, notadamente as crônicas e os capítulos de romance (que ocupariam o espaço gráfico conhecido posteriormente como folhetim).

Também os folhetins têm uma história. Sim, a história não é macro, e para a entendermos por completo devemos olhar não só para os grandes acontecimentos - ou no caso - as grandes correntes literárias, mas para os pequenos movimentos que tornaram grandes fatos possíveis. Explico-me: só foi possível o conhecimento, hoje renomado, de grandes escritores de nossa literatura, a partir da publicação de suas obras nos jornais, como Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em 1852. Inclusive, para alguns estudiosos, entre os quais Héris Arnt (2001), aí se tem a delimitação do chamado jornalismo literário.

O jornalismo literário parece ser um gênero, mas na verdade, nasceu de situações bastante particulares; um escritor que pretendia publicar sua obra nos jornais planejava sua própria edição e trabalhava, muitas vezes, na redação do jornal. Ora, lembremo-nos do grande Machado de Assis: escritor ou jornalista? O folhetim, por sua vez, nasce como um espaço de entretenimento dos jornais (e não só o brasileiro), pois o mesmo se dava em Portugal, na Inglaterra, na França, entre outros. Para se ter uma ideia, publicava-se, de início, receitas culinárias no espaço conhecido como "folhetim". Posteriormente, entretanto, este espaço viria a ser uma seção do jornal que permitiria a revelação de grandes obras e de grandes escritores. Como se vê, era a literatura aparecendo nos jornais; algo um tanto quanto distante do jornalismo literário de que falamos hodiernamente.

Tal movimento, segundo pesquisa da professora Marcia Azevedo de Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, publicada em 2012 em matéria da revista Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), repetiu-se em países europeus, especialmente na França. O Brasil travava então uma troca bastante regular para o que permitia a época com países como Portugal também. Publicava-se romances brasileiros lá (principalmente em razão das variações de preço do papel e demais custos da indústria livreira), ao mesmo tempo em que certas publicações eram feitas aqui (devido à possibilidade de maior circulação dos escritos). A obra Les Misérables, de Victor Hugo, por exemplo, foi publicada primeiramente no Brasil, antes mesmo de ganhar os leitores da França. A pesquisa mencionada acima é importante porque revela que nós, brasileiros, nem sempre fomos dependentes culturalmente do exterior. Faz-se essa relação de dependência cultural em correlação com a questão econômica; fato é que uma não é necessariamente correlata da outra, como mostrou a pesquisa divulgada também pela agência Fapesp.

Em suma, foi assim que obras de Machado, de Manuel Antônio e de Aluísio de Azevedo (final do século XIX), "o grande século", tornaram-se lidas. Com o aumento de leitores, saindo tipicamente das elites, as obras foram popularizando-se, por assim dizer; afinal, comprar um jornal - para parte do público - era mais compensador que adquirir um livro; esses sim, ainda bastante presos à edição internacional. A tradução era enviada aos países europeus para só posteriormente chegarem em solo brasileiro. Mas isso prova, uma vez mais, que existia um intercâmbio cultural, o que em muito contribuiu para o cenário legítimo do Brasil enquanto país "exportador" de obras do naturalismo (para ficarmos apenas no século XIX), tal como foi nosso breve objetivo.

Algumas referências:

ARNT, Héris. A influência da literatura no jornalismo: o folhetim e a crônica. Rio de Janeiro: E-papers, 2001.

HOHLFELDT, Antonio. Deus escreve direito por linhas tortas: O romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

https://jornalggn.com.br/cultura/a-circulacao-da-producao-literaria-brasileira-no-seculo-xix/


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